terça-feira, 26 de abril de 2005

Ai doutores!

Em Portugal não há doutores a mais, há é dos outros a menos. Ou seja, uma vez doutor, o português já não se revê, nem aceita determinado tipo de profissões dirigidas aos quadros médios. Até porque depois é uma vergonha, e o que é que vão dizer se eu, sim eu, que estive 5 anos a queimar pestanas na universidade, depois de sair de lá, mesmo não tendo qualquer formação prática, for aceitar um emprego de assistente do que quer que seja. Ora, eu sou doutor, ainda não por extenso, mas pronto, já sou doutor e isto muda tudo. Muda-se o nome nos cartões todos já por causa das coisas, e uma pessoa é logo tratada de maneira diferente, principalmente nos serviços públicos. Mesmo nas salas de espera, por exemplo, é logo diferente, mesmo que seja por intercomunicador, é diferente uma pessoa ouvir – rrssssrrsss (interferência dos intercomunicador e ligar) Dr. João Simões pode dirigir-se ao gabinete 4 para ser atendido – é logo outro estatuto, quando uma pessoa se levanta, a deferência com que é olhada, o respeito, uma pessoa até parece mais alta às vezes, parece que cresce.
E pronto, a partir do dia em que recebe o canudo tudo será diferente. Vou ser um desempregado, mas um desempregado licenciado.
Em Cuba, por exemplo, que é um dos países com maior índice de “doutores”, eles tratam-se por Licenciado João Simões - os “Joões Simões” que me perdoem, mas hoje calharam na rifa – mas claro, Licenciado já não tem o mesmo peso, não é a mesma coisa, se fosse cá em Portugal até achavam que era mesmo o nome próprio, que algum padrinho mais erudito se tinha lembrado.
A família também tem muito peso nisto dos doutores, qualquer paizinho ou mãezinha, prefere ter um filho “doutor”, mesmo que desempregado, que um carpinteiro atulhado de trabalho e a ganhar rios de dinheiro...electricistas, canalizadores, todos esses senhores que em qualquer ida a nossa casa, nos levam couro e cabelo para arranjar o tubo da máquina de lavar a roupa.
É uma questão moral, uma tradição, uma questão social até. Ainda não ultrapassámos a ideia cultivada durante gerações, em que só as grandes famílias podiam mandar os seus filhos para a universidade, normalmente para as grandes cidades. Ainda vivemos numa espécie de ressaca da abertura das portas das universidades a todos os queiram ser licenciados, ou a todos os que, pelo menos, tenham notas positivas, haverá sempre um curso onde caibam. Hoje em dia já não existe uma “coisa” que se chama Vocação. Há uns anos atrás até existiam testes vocacionais, em que se ficava a saber, mais ou menos, a área para a qual a pessoa estava mais virada. Hoje não há nada disso, os próprios dos estudantes, só na altura de preencher os impressos de inscrição no Ensino Superior é que decidem o curso. Isto é assustador. Depois existem licenciaturas tão boas quanto – Licenciatura em Assistente de Parqueamento urbano, ou Licenciatura em Taxismo Urbano, ou até, Licenciatura Fiscal biólogo de folhas secas sul-americanas enroladas em mortalha de arroz – esta por acaso era tão boa...não sei porque não vinga!

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